Ousmane Sembène: O Cineasta Que Fez da África o Centro do Mundo


Ousmane Sembène nasceu em 1923, na cidade de Ziguinchor, no Senegal, então sob domínio colonial francês. Filho de um pescador, ele abandonou a escola aos 14 anos após um confronto com um professor racista, iniciando uma trajetória marcada por trabalhos diversos e uma incansável busca por justiça social. Durante a Segunda Guerra Mundial, Sembène serviu no Exército Francês Livre, experiência que ampliou sua visão de mundo e influenciou profundamente sua obra.

Em 1947, buscando novas oportunidades, mudou-se para Marselha, onde trabalhou como estivador e teve contato direto com as duras condições enfrentadas pelos trabalhadores imigrantes africanos, experiência que moldaria profundamente sua visão crítica. Durante esse período, ele se envolveu com o Partido Comunista Francês, ampliando sua consciência política e social, e começou a explorar a literatura e o cinema como formas de expressão e resistência.

(reprodução)

Ousmane Sembène nasceu em 1923, na cidade de Ziguinchor, no Senegal, então sob domínio colonial francês. Filho de um pescador, ele abandonou a escola aos 14 anos após um confronto com um professor racista, iniciando uma trajetória marcada por trabalhos diversos e uma incansável busca por justiça social. Durante a Segunda Guerra Mundial, Sembène serviu no Exército Francês Livre, experiência que ampliou sua visão de mundo e influenciou profundamente sua obra.

Em 1947, buscando novas oportunidades, mudou-se para Marselha, onde trabalhou como estivador e teve contato direto com as duras condições enfrentadas pelos trabalhadores imigrantes africanos, experiência que moldaria profundamente sua visão crítica. Durante esse período, ele se envolveu com o Partido Comunista Francês, ampliando sua consciência política e social, e começou a explorar a literatura e o cinema como formas de expressão e resistência.

Um ponto de virada em sua vida foi uma lesão sofrida nas docas, que o deixou imobilizado por um longo período. Durante sua recuperação, Sembène mergulhou na leitura de grandes obras literárias, transformando sua experiência como trabalhador manual em escrita criativa. Seus primeiros livros, como Le Docker Noir (1956), já refletiam sua preocupação com temas como desigualdade social e racismo. Obras posteriores, como Ô Pays, Mon Beau Peuple! (1957) e Les Bouts de Bois de Dieu (1960), aprofundaram essas questões e foram publicadas pela Présence Africaine. Fundada em 1947, em Paris, pelo intelectual senegalês Alioune Diop, a Présence Africaine foi uma plataforma essencial para a valorização da cultura africana e da diáspora, publicando grandes nomes como Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, e desempenhando um papel crucial no movimento da Négritude.

Embora a Présence Africaine tenha fortalecido sua produção literária e sua influência no pensamento anticolonial, Sembène logo percebeu as limitações da literatura. O baixo letramento em francês, consequência do sistema educacional colonial elitista e excludente, tornava seus textos inacessíveis para a maioria da população senegalesa. Determinado a explorar formas mais inclusivas de comunicação, Ousmane Sembène decidiu estudar cinema na União Soviética entre 1961 e 1962. Durante esse período, ele frequentou o Gorky Film Studio, onde aprendeu técnicas essenciais de cinema e desenvolveu uma visão prática e criativa que moldaria suas obras.

Em 1963, lançou seu primeiro curta, Borom Sarret, considerado um marco do cinema africano. O filme criticava as desigualdades sociais e denunciava as cicatrizes deixadas pelo colonialismo, consolidando o compromisso de Sembène em contar histórias africanas a partir de uma perspectiva autêntica. Em 1966, com o lançamento de La Noire de…, tornou-se o primeiro cineasta africano a ganhar o prestigioso Prêmio Jean Vigo. Seu próximo longa, Mandabi (1968), foi o primeiro filme falado em uma língua africana, marcando uma ruptura com as exigências coloniais de coproduções dubladas em francês.

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Foi também nos anos 1960 que Sembène se casou com Carrie Moore, uma jornalista e ativista afro-americana, cuja contribuição foi essencial em sua vida pessoal e profissional. Moore desempenhou um papel importante durante os primeiros anos da carreira cinematográfica de Sembène, apoiando-o financeiramente e ajudando a superar a resistência das autoridades coloniais e pós-coloniais. Além disso, ela ajudou a traduzir algumas de suas obras para o inglês, ampliando sua audiência global e contribuindo para a disseminação de seu trabalho.

Carrie Moore permaneceu ao lado de Sembène durante períodos de censura e exílio, quando seus filmes foram proibidos pelo governo senegalês. Além do apoio emocional, ela foi uma parceira intelectual, compartilhando com ele um compromisso com questões sociais e políticas que eram centrais em sua obra. Sua dedicação ajudou a preservar o legado de Sembène e a promover seu trabalho internacionalmente, garantindo que ele pudesse continuar representando a verdadeira África no cinema, livre das distorções impostas pelos colonizadores e pelas elites africanas.

Com a independência do Senegal em 1960, as marcas do colonialismo continuavam visíveis nas profundas desigualdades sociais e culturais do país. Essa realidade moldou a visão crítica de Sembène, que compreendeu que a independência política não significava necessariamente emancipação total. Ele reconheceu o surgimento do neocolonialismo, perpetuado por elites locais educadas no sistema colonial e alinhadas aos interesses dos antigos colonizadores, e passou a defender a autonomia e a unidade africanas como pilares para a verdadeira libertação do continente.

Inspirado pelo pan-africanismo, Sembène viu no cinema uma ferramenta poderosa para criticar essas dinâmicas. Suas obras, como Xala (1975) e Ceddo (1977), expõem as contradições do pós-independência, revelando como o colonialismo continuava a influenciar a política, a religião e a cultura. Para Sembène, a arte era mais do que expressão: era um ato político e cultural, destinado a moldar uma identidade africana independente, livre das influências externas e das elites que perpetuavam o legado colonial. Essa visão consolidou seu legado como um dos maiores defensores da cultura e da autonomia da África, transformando sua obra em um marco para a resistência e a valorização da identidade africana.

O pai do cinema africano.

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Ousmane Sembène enfrentou inúmeros desafios para produzir suas obras. Para ele e outros grandes nomes da arte africana contemporânea, a falta de infraestrutura tornou o cinema uma empreitada árdua. A escassez de recursos financeiros e materiais dificultava ainda mais a realização de filmes independentes, especialmente para cineastas, fotógrafos, e artista africanos, que raramente contavam com apoio institucional. Determinado a criar um cinema autêntico, que refletisse as realidades africanas, Sembène precisou recorrer à sua criatividade: utilizou câmeras simples e filmes reaproveitados para dar vida às suas produções.

Em 1963, aos 40 anos, lançou seu primeiro curta-metragem, Borom Sarret, considerado um marco no cinema africano. O filme retrata o cotidiano de um condutor de carroça em Dakar e, com uma narrativa aparentemente simples, oferece uma crítica contundente às desigualdades sociais e às consequências do colonialismo.

No entanto, Sembène também enfrentou sérios obstáculos políticos no Senegal. Apesar da independência do país em 1960, as elites políticas, frequentemente alinhadas aos interesses franceses, mantinham controle sobre a produção cultural e artística. Esse cenário não impediu que Sembène alcançasse reconhecimento internacional em 1966, com o lançamento de La Noire de…. [Black Girl] que alcançou o patamar internacional, por utilizar uma narrativa impactante para abordar a alienação e a exploração enfrentadas por muitos africanos no contexto pós-colonial. Ele também se tornou o primeiro africano a integrar o júri do Festival de Cannes, no ano seguinte. Seguiram-se obras como Mandabi (1968), o primeiro longa filmado em uma língua africana, que marcou a ruptura de Sembène com as exigências coloniais de coproduções dubladas em francês.

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Sua postura crítica em relação às elites senegalesas ficou evidente em obras como Xala (1975), uma sátira à classe política pós-colonial, que ele acusava de perpetuar os interesses coloniais em detrimento das massas. Essa postura gerou conflitos com o governo e levou à censura de seus filmes. Ceddo (1977), por exemplo, que explorava as influências religiosas no Senegal e questionava o papel do islamismo e do colonialismo na história do país, foi proibido devido ao seu teor provocador. A repressão que enfrentou reflete as tensões entre as aspirações de autonomia africana e as realidades do poder político no período pós-independência.

Sembène frequentemente viajava para áreas rurais com seu próprio equipamento, exibindo filmes e promovendo debates com o público, acreditando no poder da experiência coletiva no cinema. Ele declarava: “Eu não faço filmes para a Europa, eu faço filmes para a África, porque só assim posso recuperar a nossa dignidade perdida.”

Apesar de enfrentar censura e dificuldades financeiras, ele cunhou o termo mégotage para descrever a engenhosidade necessária para criar cinema na África em meio a recursos escassos. Para financiar Emitaï (1971), por exemplo, Sembène utilizou dinheiro de uma igreja americana, mesmo sendo ateu, mostrando sua determinação em completar seus projetos.

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Ao longo de sua trajetória, Ousmane Sembène recebeu amplo reconhecimento por sua contribuição ao cinema e à cultura global. Seu primeiro longa-metragem, La Noire de… (1966), conquistou o renomado Prêmio Jean Vigo, sendo o primeiro filme de um cineasta africano a alcançar exibição comercial na França. Em 1975, Xala foi agraciado com o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cannes, evidenciando sua habilidade em mesclar crítica social e humor. O reconhecimento internacional prosseguiu em 2004, quando Moolaadé recebeu o Prêmio Un Certain Regard no Festival de Cannes, abordando com sensibilidade e coragem o tema da mutilação genital feminina. Além disso, Ceddo (1977) foi indicado à Palma de Ouro, consolidando a reputação de Sembène como um mestre do cinema. Após sua morte, ele continuou a ser homenageado, com instituições de prestígio como o British Film Institute (BFI) e o Museum of Modern Art (MoMA) promovendo retrospectivas de sua obra, solidificando seu legado como um dos grandes nomes da história do cinema mundial.

O trabalho de Ousmane Sembène vai além da crítica ao colonialismo. Ele coloca a África no centro de suas histórias, revelando, de forma honesta, a complexidade do continente. Suas narrativas atravessam gerações, abordando temas como gênero, sexualidade, tradições e modernidade, sempre a partir de uma perspectiva africana, destacando também a beleza e a pluralidade cultural do continente. Sembène revolucionou a estética africana no cinema ao adotar um estilo visual direto e impactante, que retratava com autenticidade as realidades sociais e culturais da África. Para ele, o cinema africano deveria ser produzido por africanos e para africanos, sem as distorções impostas pelas narrativas coloniais. Seus filmes priorizavam a verdade das histórias contadas, sem recorrer ao espetáculo ou à grandiosidade.

Vamos deixar uma coisa bem clara: a Europa não é o meu centro; a Europa está na margem. Após cem anos aqui, eles aprenderam a falar a minha língua? Eu falo a deles. Meu futuro não depende da Europa. Gostaria que me entendessem, mas isso não faz diferença. Pegue um mapa da África, coloque a Europa e a América juntas, e ainda vai sobrar espaço. Por que ser como um girassol e se virar para o sol? Eu mesmo sou o sol!

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Em La Noire de… (1966), por exemplo, Sembène trouxe uma narrativa intimista, centrada na experiência da protagonista Diouana, uma jovem senegalesa que enfrenta a alienação e a exploração, simbolizando as consequências do colonialismo. Essa abordagem, focada em representar a África a partir de sua própria perspectiva, foi uma contribuição estética inovadora e transformadora.


Como fundador da Federação Pan-Africana de Cineastas (FEPACI) e do Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO), Sembène pavimentou o caminho para o cinema africano independente. Seu trabalho influenciou profundamente cineastas como Djibril Diop Mambéty, diretor de Touki Bouki (1973), que explorou temas de identidade e modernidade, e Haile Gerima, conhecido por Sankofa (1993), uma obra sobre escravidão e resistência. Além disso, pensadores como Manthia Diawara, teórico do cinema africano, e o renomado escritor Ngũgĩ wa Thiong’o, defensor do uso das línguas africanas como forma de descolonização cultural, também foram profundamente impactados por sua obra e visão. Esses artistas e intelectuais, inspirados por Sembène, continuam a usar o cinema e a literatura como ferramentas para narrar histórias africanas autênticas.

O amor de Sembène pela África transparece em toda a sua obra, especialmente na forma como ele escolheu representar o continente e suas pessoas. Em várias entrevistas, ele afirmou que sua missão era dar voz à África, livre dos filtros coloniais que historicamente distorciam sua história e cultura. “Eu não faço filmes para a Europa, eu faço filmes para a África, porque só assim posso recuperar a nossa dignidade perdida”, declarou. Para Sembène, o cinema era uma ferramenta de descolonização cultural e psicológica, uma maneira de desafiar narrativas que colocavam a África como primitiva ou subdesenvolvida e reafirmar a identidade e a dignidade do povo africano.

Cena do filme Moolaadé (reprodução)

Além disso, Sembène via o cinema como um ato de resistência e transformação social. Ele construiu uma estética africana própria, desafiando as imposições coloniais e usando a arte para questionar e reconfigurar o status quo. Suas obras frequentemente abordavam temas como a corrupção das elites africanas, o neocolonialismo e a luta pela liberdade, reforçando sua convicção de que “a arte é política. Sem a arte, não há homens livres”, afirmava. Cada filme de Sembène era, portanto, não apenas uma expressão artística, mas também um manifesto social e cultural.

Sembène nos ensina que o cinema africano deve permanecer fiel às suas raízes culturais, desafiando padrões ocidentais e coloniais. Por meio de sua obra, ele não apenas contou histórias autênticas da África, mas também reconstruiu a narrativa do continente para o mundo, promovendo autonomia cultural, resistência e liberdade. Seu legado é uma prova de que a arte pode ser uma poderosa ferramenta para transformar a sociedade e afirmar a identidade de um povo.

Ousmane Sembène faleceu em 9 de junho de 2007, aos 84 anos, deixando um legado inestimável para o cinema africano e mundial. Seu último filme, Moolaadé (2004), é uma obra-prima que aborda com coragem e sensibilidade a questão da mutilação genital feminina, enquanto coloca as mulheres como potência e protagonistas da transformação social. Em suas palavras: “O desenvolvimento da África não acontecerá sem a participação efetiva das mulheres. A imagem que nossos antepassados tinham das mulheres deve ser enterrada de uma vez por todas.” Moolaadé reafirmou não apenas sua habilidade como cineasta, mas também seu compromisso com a justiça social, a dignidade humana e a igualdade de gênero. Até o fim de sua carreira, Sembène permaneceu fiel à sua missão de usar o cinema como uma ferramenta de transformação cultural e política, dando voz às histórias africanas que precisavam ser contadas. Seu impacto continua a inspirar gerações de artistas, intelectuais e ativistas ao redor do mundo.

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A pesquisadora e arte educadora Wanessa Yano | Osunmike Ẹgbẹ́yomí possui uma vasta experiência em arte educação, estudos de moda, comunicação e processos editoriais. Seus interesses de pesquisa estão profundamente enraizados na história, artes e estéticas africanas e afro diaspóricas, com um foco especial em negócios africanos centrados, comunicação e semiótica no campo da moda e da arte. Ao longo de sua carreira no campo da arte e da moda, Wanessa colaborou com diversas instituições de renome, incluindo o Instituto Tomie Ohtake, HOA Galeria, MJournal, Bienal de São Paulo, SESC-SP, Casa de Criadores, CCSP, IED, SESI e Zeferina Produções. Como fundadora da Editora Ananse e da plataforma de comunicação deend.co, ela desempenha um papel crucial na promoção da diversidade cultural e na valorização do protagonismo preto no Brasil em conexão com o mundo.ela é reconhecida por trazer ao Brasil as obras de grandes intelectuais afrocêntricos, como Cheikh Anta Diop, Molefi Kete Asante, Clenora Hudson-Weems, Nah Dove, Ytasha Womack e Oyèrónke Oyewùmí. Como pesquisadora afrocentrica, Wanessa se dedica a dois projetos importantes. O primeiro, intitulado "Tecidos Africanos no Brasil", visa analisar os tecidos tradicionais no Brasil do século XVI e seus desdobramentos na contemporaneidade, por meio de uma perspectiva antropológica. O segundo projeto, "Dos quitutes ao afroempreendedorismo", propõe uma revisão bibliográfica na disciplina da administração, investigando a presença e contribuição africana na historiografia documentada por meio das movimentações das quitandeiras na formação do afroempreendedorismo, sob a perspectiva da afrocentricidade. Ambas as pesquisas ampliaram o olhar da pesquisadora para questionar os processos cognitivos em relação à percepção e compreensão no Brasil sobre a recepção das culturas e estéticas africanas e afrodiaporicas. As ideias e pesquisas de Wanessa já foram compartilhadas em veículos de destaque, como MJournal, ELLE, Blogueiras Negras, Geledés e Revista Corpo Futuro, proporcionando uma disseminação mais ampla da cultura africana e afro-diaspórica. Essa abordagem interdisciplinar e seu compromisso com a valorização do protagonismo preto no Brasil em conexão com o mundo contribuem para moldar um mundo onde diferentes perspectivas são celebradas e respeitadas.

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